“Vai tonto, num quer ser VEB?”

O segredo está nos detalhes

Rodrigo Tavares
9 min readFeb 4, 2021

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Eu tinha um ideal muito claro pro futuro do meu Gol 95 assim que ele apareceu na minha vida, dois anos atrás: deixá-lo tão original e imaculado, que se destacaria em qualquer lugar que estivesse, pelo simples fato de estar bem cuidado. Quis o destino, e seu senso de humor sombrio e de veneta, que não fosse nem um pouco assim.

Depois de uma funilaria e repintura que a muito tempo se pediam, o surgir da necessidade de trocar pneus já gastos, e rodar 8 mil km com seu motor bem cansado e precisando de retífica, a ficha caiu: ele nunca mais será o mesmo. E mal sabia eu que isso era um bom sinal. Pra alguém que era distante da cultura de modificações, e com familiares que acreditam piamente que o melhor carro é sempre o Zero KM, eu não sabia que destino o meu teria. Mas certamente não seria mais um de molas cortadas, rodas enormes e som tão estourado de fazer inveja ao maior dos ******.

O nome na imagem é pra que não hajam dúvidas, eu imagino. (Fonte: Google Imagens)

Parte I: “Tome tenência, rapaz”

Todo cuidado é pouco, acredite. (Fonte: Arquivo Pessoal)

Sem referências ou sequer ideias do que fazer com o carro, mergulhei na internet e achei um jogo de rodas do Gol GTI 8v, aro 14, que apesar de usadas eram muito boas. Junto delas, uma estranha combinação: miolos (ou calotinhas) Glicério, do modelo Zandvoort, que equipava o Santana.

Essas rodas casaram tão bem com o carro, que me despertaram a curiosidade: “será que dá pra ir mais longe nesse lance de personalização, como se eu realmente vivesse em 1995, ano em que esse carro saiu da fábrica?”

Felizmente, a resposta é sim.

Daí pra frente é ladeira abaixo. Conforme nadava cada vez mais fundo nos itens de personalização existentes pro meu carro, e que não fizessem dele uma alegoria de escola de samba, percebi que o mercado de acessórios do Brasil é tão vasto e, porque não, cheio de história, que existe toda uma cultura automotiva por trás dessas peças. Era só o começo duma baita história. Volto com o Gol daqui alguns parágrafos.

Parte II: VEB’ing Arround

Com as informações pingadas de fóruns de internet, algumas fotos mofadas e muita força de vontade, tomei conhecimento de algo chamado “Velha Escola Brasil”, ou simplesmente, VEB. O que pra mim parecia apenas um monte de carros nacionais antigos com rodas gaúchas em imagens sem foco nenhum, era bem mas que isso. Mas pra isso ficar bem explicado, um cadinho de história cai bem, e não vai te fazer mal.

O que um homem não faz pra poder andar de Classe S e Lincoln Town Car. (Fonte: Google)

Por alguma razão que não vale a pena explicar, além de que os militares não tinham nada melhor pra fazer, você não podia simplesmente entrar em um concessionário Chevrolet e pedir um Malibu zero km, tampouco ir numa revenda de peças da vida pedir por acessórios importados pro seu Opala, por exemplo (ao menos não assim tão facilmente). O jeito era jogar com o que você tinha em mãos, o mercado de personalização nacional.

Não importa o que você precisa pra se destacar: provavelmente essas lojas tinham. (Fonte: Google Imagens)

Juntando a fome com a vontade de comer, o gearhead brasileiro só tinha nesses itens a oportunidade de dar um visual “envenenado” à sua jabiraca, já que era impedido de trazer as tão sonhadas peças importadas que via nas poucas revistas automotivas que existiam. Única maneira de se tornar especial no meio daquele trânsito tão mundano, apesar de colorido.

Então vale quase tudo, desde que seja respeitando a cultura de acessórios da época. Os carros que seguem a tal Velha Escola no geral seguem à risca algumas características, que valem a pena pontuar. São elas:

Rodas: São o cartão de visitas do seu carro. Sempre diferentes das originais, numa miríade de opções diferentes, mas quase sempre imitando um modelo já existente lá fora, e inacessível aqui (releia o início da Parte II caso tenha se perdido). As queridinhas nacionais são Scorro, Jolly, Binno, Mangels, etc. Pneus largos são os favoritos dos que querem um visual mais agressivo, mas a simples troca dos diagonais por radiais, somados às rodas novas, já era um baita upgrade.

Aqui um bom exemplo do VEB já nos anos 90: Monza montado nas rodas Binno B-860. Coisa linda. (Fonte: Monza Clube)

Interna: Aqui o bicho pega pra valer. Volantes eram os acessórios mais cobiçados da época (e ainda são, como você verá mais pro final desse texto), seja por serem menores que os originais, ou simplesmente de melhor empunhadura, além do visual esportivo. Fossem Panther, Fittipaldi ou mesmo de outros carros mais luxuosos, é a parte vital de como seu carro recebe o motorista, então toda primeira impressão importa.

Eu quase perguntei o quanto o dono queria só nesse volante de Alfa Romeo 2300, mas não queria ser posto pra fora da loja. (Fonte: Arquivo Pessoal)

Detalhe importante: manoplas de câmbio também eram bastante customizáveis, como a imagem acima entrega. Não é minha praia, mas você precisa admitir que é um senhor toque ao carro. Bancos também eram um sinal de que o dono do carro realmente se importava em se destacar do básico, ainda que isso só desse um alívio às suas nádegas.

Se você tivesse muito dinheiro mesmo e pouco medo da chuva, poderia optar por um teto solar, fosse Karmann-Ghia, Webasto e afins. O céu era o limite, literalmente.

E agora, a minha parte favorita: o Som.

A parte que fecha com chave de ouro de um VEB bem montado: um som de época. Motorádio, Bosch, Pioneer… para todos os tipos de bolsos e projetos. Numa época sem multimídia, um som potente com equalizador e a possibilidade mais remota de não depender mais do locutor da rádio pra ouvir sua música favorita, faziam dessas auto-rádios as peças mais desejadas (e roubadas) de todos os tempos. Se seu carro já vinha com um pré-instalado, então você era o rei do rolê.

O resultado final almejado era algo mais ou menos assim:

Repare neste Passat customizado pela antiga concessionária Dacon: Volante Motolita, instrumentação esportiva do TS e rádio tocafitas Pioneer. Só o que havia de mais exclusivo na época. (Fonte: Google Imagens)

Montado seu carro por dentro e por fora, a sua marca pessoal já está selada, em forma de metal, gasolina e barulho, além de recheada de itens que você nem sabia que precisava, mas que se justificam pela frase “ficou daora demais, velho”.

Ok, agora que você já sabe o que é o VEB, e provavelmente já fechou e abriu essa aba no celular umas 3 vezes, voltemos aos fatos.

Parte III: “Num quer ser VEB?”

A grande verdade sobre o dono minimamente preocupado com o próprio carro, é que quando se começa a querer enfeitar o pavão, não se para mais, e isso é fato. Nas minhas andanças sobre o que é o VEB e o que ele representa, eu esbarrei num vídeo. Sim, aquele vídeo que você provavelmente já conhece, mas que eu vou deixar aqui só por desencargo de consciência.

Com um empurrãozinho dos amigos e, porque não, do destino, tive a oportunidade de entrevistar um entusiasta dessa cultura tão maneira que é o VEB, Carlos Aleixo, no meu podcast, o PodCarro (entrevista essa que você confere aqui).

Além de autor do vídeo e dono do canal Aleixophoto, ele é a mente pensante por trás do mítico vídeo da Brasília verde, que de tão bem montada e vistosa, não tem uma viva alma que não desperte o interesse por ela. De todas as histórias que couberam (ou não) na entrevista, havia apenas uma certeza: eu tinha que visitá-los para entender de uma vez por todas o que essa tal Velha Escola representa na prática.

E assim fizemos.

Downtown Sorocaba, 1994. (Fonte: Arquivo Pessoal)

Uma oportunidade de ouro, é preciso dizer. Conhecer não só o cenário que compunha aquele vídeo, mas também as pessoas que fazem parte da cena é algo que não é só incrível, como também é revelador. E sobre isso, o mais chocante é: o que importa no VEB é o quanto ele une as pessoas, afinal.

Ter seu grupo de amigos com carros na mesma linha de customização não só é algo incrível, mas também contagiante. Você divide as histórias, os perrengues e no fim se dá conta do quão similares são os problemas entre si, e que graças aos carros você pode se dar ao prazer de partilha-los, além de fazer novas amizades. E claro, as Brasílias são um show à parte, mas isso eu sei que você já sabe.

Parte IV: O fim da linha (Nova Escola Brasil?)

Voltando à realidade menos caótica de um pós-viagem de mais de 1000km de aircooled, paro pra analisar onde começa e termina o VEB. Numa das muito acaloradas discussões nos bastidores do GPC, chegamos à conclusão que depois que as importações foram liberadas em 1990, o VEB começou a se diluir, desaguando em um monte de culturas estrangeiras diferentes.

Hoje é super normal você querer uma multimídia Pioneer, um pomo de câmbio da Shutt ou mesmo um volante Momo pro seu carro, e graças à internet e alguns milhares de reais pra gastar, você atualiza seu possante de acordo com o que há de mais novo lá fora, bastando apenas dois cliques e um cartão de crédito polpudo.

Porém isso não significa que o VEB se perdeu por completo, de fato. Você ainda pode procurar e comprar por acessórios nacionais para o seu carro, e nem por isso ficar para trás frente aos importados. Veja a Lotse, por exemplo. Queridinha de 8 em cada 10 projetos, é uma empresa nacional, com produtos de boa qualidade, e que dão um toque legal no seu carro (eu mesmo uso um volante deles, Lotse me patrocina por favor).

E aos que gostam de garimpar peças, o que o VEB deixa entranhado na pele de quem o pratica é o prazer de deixar o interior do carro o mais fiel à época possível. Rádios de época podem ter bluetooth hoje em dia, então é aquele mesmo clichê de Globo Repórter em matérias sobre o Japão: “Tradição e Modernidade andam juntas”.

Rádio Volksline Multiplex, um acessório raro nos VW dos anos 90. Em breve no painel do Gol deste que vos fala, com o melhor do Citypop estralando. (Fonte: Arquivo Pessoal)

O que eu quero dizer com tudo isso é que o espírito do VEB permanece até hoje, e pra mim isso é claro como a água. A cultura de personalizar seu carro nacional com acessórios de época (feitos no Brasil ou não), é a chave que mantém a Velha Escola mais viva do que nunca. O diferencial desse estilo em questão é a sutileza nos detalhes. Um visual mais limpo, mas que aos poucos entrega que não se trata de um carro comum.

Curiosamente, essa visão meio-sleeper-meio-calabresa se manteve intocado, dos anos 60 até agora. A descrição é até a página dois, mas é essencial.

Um exemplo bom disso é esse Escort do amigo Thiago Baum. Básico, deixou de lado a simplicidade com rodas de Focus, volante Lotse e um drop na suspensão. Coisa linda. (Fonte: Arquivo Thiago Baum)

E essa é a linha que eu adotei para o meu carro. O motor cansado deu lugar à um raro kit 1200, que deu nova vida e mais 10 cavalos ao parco CHT. Volante, rodas, pneus melhores e o futuro rádio são apenas a ponta do iceberg, e é bom saber que o VEB não é algo preso à uma filosofia única, datada ou pior: indigna do seu projeto.

A Velha Escola Brasil não é algo perdido no passado ou restrito à alguns projetos, é muito mais abrangente do que parece. E, felizmente, tá longe de acabar.

Ainda não acabamos com os relatos. Volte semana que vem.

(Agradecimento especial à Carlos Aleixo, Lucas Rasso e todos que nos receberam em Sorocaba).

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Rodrigo Tavares
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Written by Rodrigo Tavares

Entusiasta automotivo, apresentador do PodCarro e repórter no Jornal do Carro.

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